Maria Teresa Gonçalves Pereira
A Barca de Gleyre, de Monteiro Lobato:
origens da literatura infantil brasileira
Maria Teresa Gonçalves Pereira
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
(mtgpereira@yahoo.com.br)
Resumo: A Barca de Gleyre (1955) assinala a criação da literatura infantil brasileira. As crianças, desconsideradas na sociedade, representavam uma minoria linguística. Não se reconheciam no que liam. Lobato foi o artífice da transformação: a minoria se revelou maioria quando seus livros encontraram eco e reverberaram. Mostrou que a cidadania crítica passa principalmente pelo conhecimento da realidade de sua terra, com seus habitantes, com sua língua, com sua identidade. Os leitores acompanham essa gênese da criação, conscientes do papel do gênio fundador: dar vez e voz à minoria que, sem dúvida, na idade adulta, se transformará em maioria, respondendo pelos destinos do seu país.
Palavras-Chave: A Barca de Gleyre, Monteiro Lobato, origens, literatura infantil brasileira.
Abastract: A Barca de Gleyre (1995) is an earmark in the creation of Brazilian Children’s Literature. Overlooked by society, children represented a linguistic minority. They could not recognize themselves in what they read. Lobato was the one who made this change: the minority became a majority when his books echoed down and reverberated. He showed critical citizenship is a manifestation of the knowledge that one has of reality of his own land, with its people, language and identity. The readers follow that genesis of creation and are aware of its fundamentals, that is, to express the voice of a minority that, in adulthood, will become a majority and be responsible for the destiny of their country.
Keywords: A Barca de Gleyre; Monteiro Lobato; Origins; Brazilian Children’s Literature.
Cabem muitas indagações acerca do que a leitura de Monteiro Lobato proporciona aos espíritos livres e abertos, em diversas áreas do saber, além dos aspectos pessoal, emocional e profissional.
O sucesso do editor despertou uma vocação latente, hoje razão de glória incontestável: o escritor para crianças. A Menina do Narizinho Arrebitado (1921), evocava a infância passada na fazenda e já trazia o quadrunvirato feminino – Emília, Narizinho, Dona Benta e Tia Nastácia – que mandaria no Sítio do Picapau Amarelo. Lobato chegou a fazer uma tiragem de 50.000 exemplares da edição escolar de Narizinho e, com o seu tino comercial, mandou 500 para as escolas, como amostra grátis. Vendeu a edição em oito meses e, em rápida sequência, criaria mais histórias com os personagens erecontaria, em “língua desliteraturizada”, clássicos da literatura infanto-juvenil.
A Barca de Gleyre (1955), a compilação da correspondência com Godofredo Rangel, é a mais conhecida de suas atividades epistolográficas. O público brasileiro, entretanto, se deveria apropriar, também de outras cartas dirigidas a figuras conceituadas em suas áreas como, por exemplo, Lima Barreto.
Por meio das Cartas podemos acompanhar como se efetivaram os processos para a “criação” de uma literatura infantil brasileira. A literatura da época destinada às crianças se compunha de traduções europeias e histórias de fundo moral, basicamente, desprovidas de linguagem própria. Lobato vislumbrou a possibilidade de, nessa lacuna linguístico-literária, atender aos interesses infantis.
Gênero desenvolvido principalmente a partir do século XVII com a expansão dos serviços postais, a epistolografia se estabelece como um sucedâneo da oralidade, desempenhando, assim, relevantes funções comunicativas.
A correspondência constitui uma das formas mais antigas, legítimas e palpitantes de expressão do ser humano. Nas Cartas, a vida explode, não se deixando camuflar; às vezes, patéticas, nos lembram da ficção. Desvelar a realidade humana é fascinante, embora a paixão estética também se torne elemento de atração.
A arte da correspondência consiste, segundo Cassiano Nunes (1982), num prolongamento da arte da conversação, arte que parece perdida no neobarbarismo da atualidade.
Detenho-me nas cartas de Monteiro Lobato a Godofredo Rangel, escritas de 1903 até 1948, pouco antes da sua morte. São 752 páginas, em dois volumes, publicados sob o título de A Barca de Gleyre (1955). Homem de múltiplas facetas – advogado, empresário, fazendeiro, editor e “manipulador” eficiente das palavras, contista consagrado e, principalmente, gênio fundador da literatura infantil brasileira –, Lobato nos legou um admirável acervo de cartas para que nelas mergulhemos prazerosa e/ou cientificamente.
Acompanhar as considerações sobre literatura pelas páginas da Barca revela-se um exercício estimulante. Em meio às atividades profissionais exercidas, aos obstáculos e às dificuldades, Lobato nunca descurou da literatura em suas variadas representações. Voraz leitor da literatura universal — os alemães, os franceses, os ingleses – consumiu-a plenamente, avaliando-a em detalhes, sob o olhar de lince costumeiro, sem concessões. As críticas eram sempre fundamentadas, distantes do “achismo” inconsequente e vazio. Como leitor polivalente de diferentes temas, se serve desse conhecimento adquirido para argumentar e analisar.
A novidade nas ideias de Lobato sobre literatura e respectivos gêneros repercute porque o escritor emite opiniões, como leitor apaixonado, porém, nunca superficial e descuidado sobre o objeto de seu interesse. As palavras e as imagens quase sempre se originam de coisas e de situações que cercam o quotidiano do homem. Lobato as mistura, as combina, elaborando definições e conceitos; embasa-os em análise crítica consistente, alcançando, entretanto, o leitor comum.
Acredita na literatura incorporada ao dia a dia e não como manifestação à parte do indivíduo. Sempre que dela se afasta, alega que não pode dispensá-la, admitindo o vício. Escreve, em junho de 1904: “Tentei arrancar de mim o carnegão da literatura. Impossível. Só consegui uma coisa: adiar para depois dos trinta o meu aparecimento. Literatura é cachaça. Vicia. A gente começa com um cálice e acaba pau d’água de cadeia” (1955: 1º tomo, 62).
É no homem que, para Lobato, está o encanto da vida. Nele se resume a chama que o impulsiona em seus projetos. É por ele que luta em várias frentes. E sua literatura (e respectivas reflexões) para ele converge. Torna-se a sua matéria-prima preferida.
Escrever sobre o que não vivenciaram é outra crítica de Lobato aos escritores. Para ele, a “imaginação” tem limites, exemplificando com o romantismo indianista. Não entendia a literatura gratuita ou simplesmente esteticista. Como um pragmatista, enfatiza que a criação literária devia transmitir um assunto: recado, conselho, mensagem ou notícia. “Excessos barrocos ou elipses herméticas, palavras em liberdade do futurismo ou o fluxo alógico do surrealismo careciam de sentido para esse artista natural, despreparado no campo da estética”, opina Cassiano Nunes (1998: 103).
Não defendia apenas uma sociedade moderna e dinâmica, em nome da qual reprova o Brasil rural e arcaico. Sua modernidade incluía também o combate contra o “ranço” da linguagem literária tradicional, importada da França e referendada pela Academia. Muitos textos de Lobato constituem críticas candentes à busca de palavras raras, à gramatiquice e ao empolamento da linguagem em que se traduzia a literatura oficial brasileira na passagem do século XIX para o século XX.
A resistência em assumir a linguagem literária dos que o precederam revela coerência no compromisso com uma literatura que representasse o Brasil em temas e linguagem, como Euclides da Cunha.
Considerando sua biografia, existe o incômodo com a distância entre os brasileiros cultos e as coisas da terra, que se reflete na ignorância daqueles que nada sabem (e não querem saber) sobre outros “brasis” em detrimento de uma cultura importada que deveria ser acréscimo e não objetivo ou meta.
Tanto personagens como Jeca Tatu e Zé Brasil – homens do Brasil rural – quanto o Sítio do Picapau Amarelo confirmam a tentativa de um projeto nacionalista.
A literatura infantil praticamente não existia no Brasil. Antes de Monteiro Lobato, os escritores extraíam dos velhos fabulários o tema e a moralidade das engenhosas narrativas que deslumbraram e enterneceram as crianças das antigas gerações, desprezando frequentemente as lendas e as tradições brasileiras para colherem, nas tradições europeias, matéria para suas histórias. E, se pouco ou nada de original escreviam, as traduções eram também raras e irregulares, fornecendo um balanço na própria produção. Monteiro Lobato considerava criminoso não aproveitar a onda favorável para empreender de uma vez por todas a renovação da literatura infantil no Brasil.
A criança, relegada a segundo plano e desconsiderada na sociedade, representava uma minoria linguística não contemplada, exatamente por não merecer voz, pela sua falta de expressão social. Importando-se temas e linguagens, meras reproduções de outras realidades, o distanciamento era enorme, já que não se materializava um contingente de leitores efetivos. As crianças não se reconheciam no que liam, pois as publicações se embasavam numa linguagem artificial, sem magia e criatividade, que não correspondia às suas aspirações. Muito menos os temas lhes diziam algo ou as instigavam.
Em ABarca de Gleyre (1955), informa seus planos literários, entre os quais a “criação” de uma literatura para crianças. Há revelações importantes sobre sua concepção de leitura, notadamente a destinada ao pequeno leitor. As intenções são explicitadas na correspondência trocada com Godofredo Rangel, mas só em 1916 o projeto efetivamente toma forma.
Numa das Cartas, Lobato manifesta preocupação com a formação dos próprios filhos, estendendo-a às crianças do Brasil. A figura de Purezinha, sua mulher, contando histórias parece inspirá-lo, destacando-se o fato de as crianças ouvirem as histórias e não as lerem. Salienta a importância de se concentrarem nas aventuras, sem atentarem para a “moralidade” implícita (ou explícita). Tal observação vai ao encontro das ideias sobre a necessidade primordial de valorizar a fantasia comum ao ser humano, o que encontra terreno fértil na infância. Purezinha, então, serve de motivação para os papéis atribuídos à Dona Benta e à Tia Nastácia como “contadoras de histórias”.
É enfático e persistente ao abordar o que chama de “desliteraturização” da linguagem, com críticas incisivas ao conceito de literatura, que privilegia o apuro formal em detrimento da clareza e da objetividade, evidentemente, conservando a essência. Para Lobato, a linguagem de se falar com as crianças deveria fundar-se na oralidade.
Em inúmeras passagens de A Barca de Gleyre (1955), retoma a questão do “falar empolado”, cheio de “literatice”. Rogava a Godofredo Rangel que o corrigisse e o avisasse para não incorrer em tal imperdoável erro. Justifica-se com a alegação de que as crianças ainda não estariam com o “cérebro envenenado” como os adultos, podendo, assim, receber só boas e saudáveis influências.
Junte-se-lhe a concepção de que os aspectos morais passariam longe do texto para crianças, conferindo-lhes o direito de exercerem a liberdade de questionarem e de criticarem; tais objetivos, entretanto, se alcançariam pelo ludismo, pela diversão. No processo, a discussão e o diálogo seriam permanentes. Lobato aposta na inteligência de seu leitor. Sem pedagogismos ou moralismos, inaugura um novo percurso nos caminhos da produção literária orientada para crianças e jovens, instigando o pensamento autônomo. A leitura, em vez de afugentar o leitor, o seduz. Em vez de tarefa que a criança decifra por necessidade, deve agradar-lhe, revelando-lhe o poder dos livros. Monteiro Lobato foi o artífice de uma transformação: a minoria se revelou maioria na medida em que seus livros encontraram eco e reverberaram. Os pequenos leitores se agigantaram e mostraram sua força.
Ao resolver dirigir-se à criança, expressa sua insatisfação e discordância com os cânones que regiam a produção na época, mais exatamente com seu caráter realista e veiculador de preceitos. Ao mesmo tempo, opera uma releitura e modernização dos contos de fadas e dos textos de tradição oral. Não se alinha à produção existente no período, mas rompe com o estabelecido, construindo uma obra inaugural do gênero.
A escrita endereçada à infância, para Lobato, se fundaria, então, não na descrição da realidade, mas na sua crítica pela construção da fantasia. O autor estabelece o recurso à imaginação como um dos traços marcantes dessa escrita.
Emília, o personagem-símbolo, para muitos o seu alter-ego, representa o “espírito” que dominava as histórias e os personagens. Um espírito de irreverência sadia, de contestação inteligente, de não-aceitação das imposições gratuitas, de permanente questionamento – perpassado por um irresistível senso de humor. Lobato menciona constantemente Emília nas Cartas; em pensamentos e atitudes se diz influenciado por ela.
Podemos inferir que essa busca do “livro infantil ideal” origina-se nas (muitas) leituras de Lobato quando criança e jovem, referidas em passagens das Cartas. Pelos comentários feitos (e retomados), esclarece como tais leituras o influenciaram, acompanhando-o pela vida. São leituras de imersão que o sensibilizaram.
É, entretanto, na saga do Picapau Amarelo que Monteiro Lobato consegue reduzir o “senso estético” a um sexto sentido e, de fato, se para adultos escrevia como que fora do seu “eu”, para crianças escreve de “dentro de si”, como uma delas, produzindo uma obra genial. O Sítio passou a fazer parte do imaginário coletivo das crianças brasileiras, estabelecendo um patamar de qualidade que se tornaria modelo para os escritores que vieram depois. Lobato mostrou que a criança precisa ser levada a sério e que a cidadania crítica passa principalmente pelo conhecimento da realidade de sua terra, com seus habitantes, com sua língua, com sua identidade.
A grande revolução levada a cabo por Lobato decorre da sua postura inovadora, da relação de respeito com o jovem leitor. Para ele, a criança é um ser dotado de inteligência e capaz de juízo crítico, nunca um adulto em miniatura, como muitos supunham e assim a tratavam. O seu texto fala da criança “sem coleiras”, que se vê num mundo de fantasia onde não há limites definidos entre o real e o imaginário, atribuindo-lhe o status de agente de transformação.Quando se pergunta à Emília, em Fábulas (1958: 63), qual o segredo do Sítio, ela responde: “O segredo, meu filho, é um só: liberdade. Aqui não há coleiras. A grande desgraça do mundo é a coleira. E como há coleiras espalhadas pelo mundo”.
O percurso se inicia em 1921, com A Menina do Narizinho Arrebitado, mais tarde Reinações de Narizinho, obra que encantou as crianças brasileiras durante várias épocas e que representa, sem dúvida, o clímax desse envolvimento amoroso da criança com um livro, tão bem registrado por Clarice Lispector (1998) em “Felicidade Clandestina”. Em A Barca de Gleyre (1955), Lobato confessa (e aceita) a vocação para escrever para crianças, lamentando o tempo que perdeu com os adultos. A preocupação com o futuro, melhorando o mundo para se viver com mais qualidade, condiz com a concepção de que às crianças se reserva papel fundamental nesse processo.
O principal biógrafo, Edgard Cavalheiro (1998: 224), procurando descobrir a razão para Lobato ter abandonando a ficção para adultos e se dedicado à literatura infantil, recebeu do escritor a seguinte resposta: “Achava muito fácil ser conteur. As histórias já não me despertavam o mínimo interesse criador. Tudo corria muito mecanicamente. Sentia-me senhor da arte. E ela não me podia oferecer sensações novas”. E, ao repórter que desejou saber por que escrevia para crianças: “Jamais pensei nisso. Talvez pela mesma razão porque os outros escrevem para adultos. Mania, impulso, falta de ocupação mais rendosa, esperança vaga de qualquer coisa – como glória, dinheiro e que tais.” Continuando a resposta: “Dá-me prazer e traz-me compensações, coisa que jamais usufruí e senti escrevendo para marmanjos...”
A Barca de Gleyre (1955) aponta com nitidez esse momento relevante da literatura brasileira, com depoimentos contundentes ao estilo de Lobato. Os leitores da obra acompanham em todas as fases a gênese da criação, conscientes do papel do gênio fundador: dar vez e voz à minoria que, sem dúvida, na idade adulta, se transformará em maioria, respondendo pelos destinos do seu país.
Aparecem apenas no segundo tomo as referências à literatura infantil. É fundamental, então, dar a palavra ao escritor. Escolhemos duas passagens que nos pareceram bem significativas.
Ando com ideias de entrar por esse caminho: livros para crianças. De escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas para as crianças, um livro é todo um mundo. Lembro-me de como vivi dentro do Robinson Crusoé do Laemmert. Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar. Não ler e jogar fora; sim morar, como morei no Robinson e n'Os Filhos do Capitão Grant (1955: Tomo 2, 292-293).
Ah, Rangel, que mundos diferentes, o do adulto e o da criança! Por não compreender isso e considerar a criança “um adulto em ponto pequeno”, é que tantos escritores fracassam na literatura infantil e um Andersen fica eterno. Estou nesse setor há vinte anos, e o intenso grau da minha “reeditabilidade” mostra que o meu verdadeiro setor é esse. A reeditabilidade dos meus livros para adultos é muito menor. Não posso dar a receita. Entram em cena imponderáveis inapreensíveis (1955: Tomo 2, 346).
Bibliografia
CAVALHEIRO, Edgard (1956), Monteiro Lobato: vida e obra, Tomos 1 e 2, 2ª ed. revista e aumentada, São Paulo: Companhia Editora Nacional.
LISPECTOR, Clarice (1998), “Felicidade Clandestina”, in FelicidadeClandestina, Rio de Janeiro: Editora Rocco, pp. 77-83.
LOBATO, Monteiro (1955), A Barca de Gleyre,Tomos 1 e 2, São Paulo: Editora Brasiliense.
— (1958), Fábulas, 17ªed., São Paulo: Editora Brasiliense.
LOPES, Eliane Marta Teixeira & Maria Cristina Soares de GOUVÊA (1999), Lendo e escrevendo Lobato, Belo Horizonte: Autêntica.
NUNES, Cassiano (1998), Novos estudos sobre Monteiro Lobato, Brasília: Editora UnB.
PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves Pereira (1980), Processos expressivos da literatura infantil de Monteiro Lobato, Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro: PUC-Rio.
— (2008), A Barca de Gleyre: ponto ou vírgula para o (re)conhecimento de Monteiro Lobato, Trabalho final de pós doutoramento, Porto Alegre: PUCRS.
ZILBERMAN, Regina (1982), Letras de Hoje – Monteiro Lobato: edição comemorativa do centenário de nascimento, nº 49, setembro, Porto Alegre: PUCRS.