Vania Cristina Alexandrino Bernardo
A identidade da criança quilombola vista nas letras de sua biblioteca
Vania Cristina Alexandrino Bernardo
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense- If Fluminense
(vcab@iff.edu.br)
Resumo: Este trabalho discute a presença da criança negra, nos livros de literatura infantil brasileira, que compõem os acervos das bibliotecas vinculadas a escolas de comunidades quilombolas que são nosso objeto da pesquisa no IF Fluminense (Campos dos Goytacazes-Rio de Janeiro-Brasil), no Núcleo de Estudos Culturais, Estéticos e de Linguagens (Necel), dentro do qual investigamos os falares de comunidades quilombolas da região. É analisado o aspecto quantitativo de obras com essa temática, assim como o tratamento que é dado ao negro nos livros encontrados. Discute-se também o caráter das relações étnico-raciais nessa biblioteca em tela.
Palavras-Chave: criança quilombola, identidade, literatura infantil, segregação racial.
Abstract: This work discusses the black child's presence, in the books of Brazilian infantile literature which compose the collection of the linked libraries of quilombola communities' schools, a research object in IF Fluminense (Campos dos Goytacazes-Rio de Janeiro-Brazil), in the Center of Cultural, Aesthetic and Language Studies (Necel), where our regional quilombolas' speaking is investigated. The quantitative aspect of books concerning this theme is analyzed as well as the treatment regarding the black present in them. The character of these ethnic-racial relationships is also discussed in this screen library.
Key words: quilombola child, identity, Infantile literature,racial segregation.
Dentro desse novo paradigma em que está pautada a sociedade, a busca pela identidade e pelo pertencimento têm encaminhado nossa produção literária para um ponto um pouco mais afastado dos modelos europeus os quais, até o início do século XX, eram majoritariamente copiados pelos escritores brasileiros. Há de se registrar, na trajetória da literatura nacional, a importância de Monteiro Lobato, um escritor que inovou o projeto até então desenvolvido, inserindo a temática da cultura regional caracterizada pelas especificidades do meio rural brasileiro conforme se apresentavam em nosso espaço, assim como instaurou a direção para um novo público: o infantil. Até àquela data, não havia “literatura para criança”, tampouco tipos como o negro ou o matuto eram inseridos nas narrativas, a não ser se estivessem geograficamente marginalizados.
Dentro desta perspectiva, Lobato é o ponto-de-partida para o nosso questionamento, no momento em que buscamos observar a identidade da criança quilombola, veiculada na produção literária dos livros paradidáticos que compõem as bibliotecas ou os chamados “Cantinhos de leitura” das escolas visitadas por nós, nos 05 (cinco) quilombos, sediados em 02 (dois) municípios fluminenses, a saber: em Campos dos Goytacazes-Rio de Janeiro-Brasil (Conceição do Imbé, Cambucá, Batatal e Aleluia) e em Quissamã-Rio de Janeiro-Brasil (Machadinha).
Desde 2001, o governo federal brasileiro tem implementado várias políticas afirmativas voltadas para as comunidades quilombolas. Tais iniciativas visam ao reconhecimento do negro, como elemento formador de nossa gente, tanto quanto o português e o índio. Em 10 de setembro de 2001, é instituído o Decreto nº 3.912/01, que regulamenta as disposições relativas ao processo administrativo para identificação dos remanescentes quilombolas e para o reconhecimento, a definição, a demarcação, a titulação e o registro imobiliário das terras por eles ocupadas. Associadas a essa política, outras ações se sucederam, tais como o lançamento, em 12 de março de 2002, do Programa Brasil Quilombola e a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em março de 2003.
Outra ação afirmativa do Governo Federal, que surge em consonância com essa legitimidade das comunidades quilombolas pelo poder público (SEPPIR) e sendo amplamente recomendado o reconhecimento e inserção dessas comunidades, no cotidiano escolar, é a sanção da Lei nº 10.639/2003-MEC a qual estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, na Educação Básica, que culminou nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004).
Dentro desse embasamento legal e da importância do legado inovador de Monteiro Lobato para a literatura, investigamos se os atores sociais dos quilombos visitados, ou seja, os protagonistas neste processo de formação da cidadania, estão sendo formados, via literatura, dentro dessa perspectiva de valorização de seu papel na constituição da sociedade brasileira.
As bibliotecas ou “Cantinhos de Leituras” dos quilombos citados possuem cerca de 500 títulos voltados para a literatura infantil. Neste universo, foram encontrados somente cinco livros que tematizam a questão de forma “exemplar”.
Cabe ressaltar que dois deles foram publicados por iniciativa pública e possuem um caráter, predominantemente, pedagógico. O primeiro, Vamos promover o Quilombo, é uma cartilha produzida pela Funasa, órgão executivo do Ministério da Saúde, responsável em promover a inclusão social por meio de ações de saneamento ambiental. O segundo título diz respeito a uma iniciativa do poder público municipal. Neste livro, é contada a história do quilombo do ponto-de-vista de uma criança.
Os outros três livros são: uma História em Quadrinhos; uma narrativa cuja personagem principal é uma menina negra e um livro de quadrinhas com versos polissílabos cuja temática é a diversidade. Assim, 99% dos títulos são obras que possuem histórias nas quais o negro não está presente ou, então, é retratado como elemento secundário. Os protagonistas são brancos com uma visão de mundo característica de um grupo social bastante distante daquela conhecida pelos quilombolas.
A valorização do mestiço brasileiro e a preocupação com o público infantil, na literatura de Monteiro Lobato, são lembradas por Afrânio Coutinho e Eduardo Coutinho. Eles argumentam que boa parte da produção lobatiana está pautada num “regionalismo que procura fixar tipos, costumes e linguajar típicos, sem visíveis influências alienígenas” e que a preocupação com o público infantil por parte de Lobato, ainda que presa às questões didáticas, pode ser vista, por exemplo, em obras publicadas nos anos trinta do século passado (1997: 297). Mesmo que o aspecto literário não seja a tônica principal, a criança é trazida ao centro do interesse a partir do mundo de maravilhas para o qual ela é chamada.
Quanto à presença do negro, em Lobato, podemos analisá-la em Histórias de Tia Nastácia, por exemplo. Nessa narrativa, é traçado o perfil da figura dessa Tia que, assim como outros personagens negros, aparece de forma estereotipada. D. Benta diz: “Que é o povo? São essas pobres tias velhas, como Nastácia, sem cultura nenhuma, que nem ler sabem e que outra coisa não fazem senão ouvir as histórias de outras criaturas igualmente ignorantes (...)” (1937: 30). Ou, ainda, num fragmento um pouco mais à frente, podemos encontrar Tia Nastácia assim definida na opinião de Emília:
— Só aturo estas histórias como estudo de ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas. Não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e bárbaras – coisa mesmo de negra beiçuda, como tia Nastácia. Não gosto. Não gosto e não gosto (Idem, ibidem: 31).
Vemos que, apesar do caráter de vanguarda, Lobato, ainda, atrela-se à visão estereotipada do negro. A produção literária nacional ganhou novo fôlego, mas, continua aquém do esperado. Observando um recente resultado parcial da pesquisa empreendida por Eliane Santana Dias Debus, tendo em vista sete editoras, foi encontrado um total de 79 títulos que abordam a temática da presença do negro em nossa literatura. Tal número é muito tímido tendo em vista a expectativa que o brasileiro pode ter em ver representada em nossa literatura a sua identidade e o seu grau de pertencimento na sociedade.
Considerando, ainda, os poucos avanços seja na questão da representação do negro em nossa literatura, seja na quantidade de títulos dedicados ao tema, o tratamento das relações étnico-raciais, nesse setor, ratifica o papel cultural dessa minoria na sociedade, ou seja, o de coadjuvante. A ficção retrata a vivência desse grupo, apagando-lhe o rosto, negando-lhe os falares e suas tradições. Os resultados mostram que esses atores sociais estão, ainda, muito excluídos e que a reprodução da ideologia racista, marcada por estereótipos negativos, é muito presente nos livros chamados paradidáticos. Tal postura provoca uma prática pedagógica também propagadora de tais modelos pejorativos que acabam por influenciar os alunos negros o quais, muitas vezes, internalizam os conceitos que lhe são impostos no ambiente escolar, sendo-lhes calada a voz.
Bibliografía
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