Cristina Maseda / Gabriela Dutra Gibrail
Flipinha – reinventando a cidade a partir da literatura
Cristina Souza Santos Maseda
Gabriela Dutra Gibrail
Associação Casa Azul
(cristina@casaazul.org.br / gabriela@casaazul.org.br)
Resumo: A Flipinha é uma experiência exitosa que nasce de um importante evento literário, a Festa Literária Internacional de Paraty – FLIP, realizada na cidade de Paraty, no estado do Rio de Janeiro, no Brasil. Durante o evento acontece a apresentação dos resultados das atividades de leitura realizadas ao longo do ano pelas escolas. As transformações ocorrem quando os alunos e educadores têm a dimensão exata da importância da leitura e da história pessoal de cada indivíduo. As ações são contínuas, com foco no acervo de literatura infantil e juvenil, a formação de mediadores de leitura e a valorização do patrimônio cultural local, com ações que envolvem alunos e professores da rede escolar de Paraty.
Palabras-chave: literatura, patrimônio cultural, desenvolvimento social.
Abstract: The Flipinha is a successful experience that stems from a major literary event, the International Literary Festival of Paraty, held in the city of Paraty, in Rio de Janeiro, Brazil. During the event happens to presenting the results of reading activities held throughout the year by schools. Transformations occur when students and educators have the exact dimension of the importance of reading and personal history of each individual. Actions are ongoing, focusing on the achievements of children and youth literature, the formation of mediators of reading and appreciation of local cultural heritage, with actions that involve students and teachers from the school of Paraty.
Keywords: literature, cultural heritage, social development.
Reconhecida desde 2004 como uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público), a Associação Casa Azul iniciou suas ações em 1994 visando à implantação do projeto de Revitalização Urbana dos Espaços Públicos de Borda d’Água de Paraty e à aproximação das instituições públicas e privadas dos anseios da população local. Entre seus objetivos, destacam-se a revitalização urbana sustentável, o aprimoramento da qualidade de vida dos cidadãos, a promoção do turismo sensível aos valores da cultura local e a conservação do patrimônio material e imaterial da cidade.
A Associação Casa Azul entende que a cultura é um veículo poderoso para mudanças profundas no modo pelo qual a população faz uso dos espaços urbanos. Por isso a escolha de criar um festival de cultura, a Festa Literária Internacional de Paraty – Flip, que promove a literatura e potencializa transformações nas áreas de infraestrutura urbana, preservação do patrimônio e educação.
O Núcleo de Educação e Cultura da Associação Casa Azul tem como missão a formação de leitores críticos e reflexivos, aptos a pensar e intervir em seu ambiente. É responsável pelo programa de incentivo à leitura Mar de Leitores em parceria com o Instituto C&A e a Secretaria Municipal de Educação de Paraty (conjunto de ações piloto que futuramente possam se transformar em políticas públicas municipais) e pela Flipinha, que acontece desde 2004 durante a Flip e conta com a participação de escolas não só de Paraty, mas também de cidades vizinhas como Angra dos Reis e Ubatuba. O Núcleo atua ao longo do ano com atividades de incentivo à leitura, capacitação de professores e mediadores de leitura, organização de oficinas literárias e artísticas e criação e manutenção de bibliotecas.
A grande questão para a Associação Casa Azul, por exemplo, não foi tanto ou não foi só “como fazer um grande festival literário”. Mais exatamente o problema foi – e continua sendo todos os anos – “como fazer um grande festival literário no qual a comunidade participe e que participe da comunidade”. Grande parte da resposta – talvez a mais importante –, tanto para a primeira quanto para a segunda questão, pudemos encontrar na Flipinha. Da interação entre a intensa atividade intelectual dos cinco dias da FLIP e as instituições pedagógicas locais brotaram gradualmente a Flipinha – programação infantil da FLIP, a Ciranda de bonecos, as oficinas de leitura, a Biblioteca da Flipinha com seus mais de oito mil livros infantis, doação de acervo para escolas e instituições, que somam, até 2010, 32 acervos de, aproximadamente, 300 livros e tantas outras iniciativas, criando bibliotecas em todas as escolas da rede municipal de ensino de Paraty. Tudo com o objetivo de convidar as crianças a apalparem, saborearem e utilizarem esta ferramenta fundamental para toda e qualquer interpretação ou atuação sobre o mundo, a palavra, a partir de sua expressão máxima, a literatura.
È necessário que uma sociedade que se quer democrática seja capaz de garantir a todos o acesso aos primeiros livros de literatura. E, em seguida, mostrar o caminho para que o leitor possa seguir sozinho com as leituras que irão acompanhá-lo por toda a vida. Só livro didático ou leitura de aprimoramento profissional e informação sobre o mundo são absolutamente insuficientes. Nem ao menos são prioritários. É preciso ler literatura, em dieta variada, incluindo livros diferentes, de autores diversos, de estilos variados, de muitas épocas. Nada se compara a ela a esse respeito (Machado, 2007: 176).
Bibliotecas em Paraty
O núcleo de Educação e Cultura foi responsável pela criação da primeira biblioteca direcionada ao público infantil e jovem em Paraty. Nos últimos quatro anos, 12.000 livros foram adquiridos por meio de doações. Metade deles compõe o acervo da Biblioteca da Flipinha, localizada na sede da Casa Azul, em Paraty. Os outros 6.000 livros foram distribuídos em acervos de 300 unidades, instalados em vinte escolas da região.
Além dos acervos direcionados ao público infantil e jovem, a Casa Azul mantém o acervo da FLIP, com um acervo de cerca de 1.000 títulos de autores que já participaram da Festa Literária, e o acervo Carlos Calchi, localizado na Biblioteca Municipal Fábio Villaboim de Paraty, composto por 900 títulos, também de autores convidados do evento literário.
A Associação Casa Azul é Comitê do PROLER, da Biblioteca Nacional, Ponto de Cultura, Ponto de Leitura, todas essas políticas do Governo Federal e Estadual, nas quais estamos inseridas e que fortalecem a instituição como uma referência em livro e literatura em Paraty. Entendendo que para se formar leitores são precisos livros, a Casa Azul vem por sua iniciativa e estabelecendo parcerias formando acervos e atuando na formação de mediadores de leitura de maneira sistemática ao longo destes anos. Além disso, recebeu Menção honrosa no Prêmio Viva leitura. A Biblioteca da Casa Azul é um destino certo de crianças, jovens e adultos que buscam literatura em Paraty.
Paraty e a literatura
O município que esteve, praticamente, isolado do restante do País com acesso apenas marítimo até 1973, quando foi aberta a Rodovia Rio Santos, tem uma história muito peculiar que, ao mesmo tempo em que preservou sua estrutura arquitetônica e tradições, a distanciou de avanços e modernização que aconteceram no restante do Brasil. Assim, a população de cultura, fortemente, regionalizada e reconhecida, muitas vezes não reconhece o valor ou nem mesmo conhece a cultura universal, especialmente, a cultura escrita e a leitura literária, uma vez que temos uma cultura, tradicionalmente, oral. Esse panorama nos traz indicadores de que não é suficiente que se tenha o acesso ao livro para se apropriar da cultura literária, é fundamental se criar uma cultura da escrita e uma ponte que una livros e leitores. Quando falamos sobre a centralidade da palavra escrita, não se desconsidera a validade de outros códigos e linguagens, as tradições orais e as novas textualidades que surgem com as tecnologias digitais. A questão, então, é: como universalizar este acesso e ao mesmo tempo consolidá-lo?
Pensando nisso, a Casa Azul, debruçando-se sobre as diversas ações que mantém neste sentido, entende que somente uma ação que envolva os educadores tornando-os leitores, fará com que esses, percebendo a importância fundamental e transformadora da literatura na vida das pessoas, tenham condições reais de multiplicar esta idéia aos seus alunos e estes às suas famílias, numa corrente continua que mudará a história do nosso município. Não apenas como um projeto a ser implantado, mas como um movimento para a formação de cidadãos conscientes e capazes de intervir, positivamente, em seu local.
A Literatura pode localizar o indivíduo na sua cidade e no mundo, pode transportá-lo para outros lugares e torná-lo outras pessoas, mesmo que momentaneamente, enquanto lê o livro. A Literatura desperta a consciência e valoriza o que é seu e quem é você, ao mesmo tempo, que o faz conhecer e respeitar o outro.
A leitura e a escrita são, na contemporaneidade, instrumentos decisivos para que as pessoas possam desenvolver de maneira plena seu potencial humano e caracterizam-se como fundamentais para fortalecer a capacidade de expressão da diversidade cultural dos povos, favorecendo todo tipo de intercâmbio cultural; são requisitos indispensáveis para alcançar níveis educativos mais altos; apresentam-se como condição necessária para o desenvolvimento social e econômico. A leitura e o livro são vistos neste plano, não apenas em uma dimensão educacional, mas também, em uma perspectiva cultural, na qual se reconhecem três dimensões trabalhadas pela atual gestão do Ministério da Cultura. A política cultural em voga no Brasil parte de uma perspectiva sistêmica, que se desdobra em três dimensões, as quais são absorvidas por este plano para o setor de livro e leitura: a cultura como valor simbólico, a cultura como direito de cidadania e a cultura como economia. Não há preponderância de uma dimensão sobre a outra, embora os focos da acessibilidade e do valor simbólico contemplem mais definidamente, as dimensões educacionais (direito de cidadania) e culturais da leitura (Plano Nacional do Livro e Leitura, 2007)[1].
Mar de leitores
Para realizarmos todas as ações, contamos com parcerias, que são fundamentais para o sucesso de um projeto. Agregar valor através de apoios e parcerias é o que garante a sustentabilidade das ações. Em 2009, a parceria com o Instituto C&A, já conhecida pela importância de seu trabalho relacionado ao livro e leitura, foi fundamental para consolidação e ampliação do projeto, que a partir desse momento foi batizado como Mar de leitores.
O Mar de leitores, que faz parte do Núcleo de Educação e Cultura da Associação Casa Azul, tem como missão a formação de leitores críticos e reflexivos, aptos a pensar e intervir em seu ambiente. Este programa abrange as redes pública e privada de ensino de Paraty e região, atuando, ao longo do ano, com atividades de incentivo à leitura, capacitação de professores e mediadores de leitura, organização de oficinas literárias e artísticas e criação e manutenção de bibliotecas.
A parceria com a Secretaria de Educação e Instituto C&A são decisivas na construção e implementação do projeto. Parcerias essas que foram possíveis graças à credibilidade do trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Educação e Cultura da Associação Casa Azul.
A idéia central do projeto é de uma formação continuada do professor como mediador de leitura e a promoção de ações culturais, ao longo de três anos, que possam despertar-lhe o prazer que a literatura provoca, ao mesmo tempo em que possa apontar-lhe formas de trabalho com o uso da literatura e da cultura escrita, para uma sensível melhoria no nível e no aproveitamento de seus alunos e através destes acessar a comunidade e entorno das escolas.
Em cinco anos de realização do projeto e constantes avaliações, verificamos que a participação dos alunos e professores no programa saltou de 30 estudantes e 20 professores para 6 mil alunos e 600 educadores, envolvendo, em 2007, 90% de toda a rede escolar pública de Paraty e arredores. Proporcionou mudanças significativas no olhar da comunidade em relação à cidade e viabilizou o acesso ao livro e a leitura. A proposta, nesse momento, é aprofundar as ações, construir uma Política Pública do Livro e Leitura e, assim, consolidar, em Paraty, uma cultura do livro literário.
A escola deve então ser um espaço de sociabilização da leitura, promovendo a implicação e resposta de todos, professores e alunos, no processo, seja ele individual ou coletivo, livre ou orientado. A leitura socializada precisa de um espaço escolar em construção, não só em termos físicos, em que o papel dinamizador da Biblioteca Escolar é fulcral, como no que concerne os referentes de grupo. É por isso necessário estar atento às descobertas de leitura que os alunos levam a cabo autonomamente, para que estas sirvam de base a novas leituras. Quanto aos objetivos escolares, a leitura poderá estar sempre presente, por ser transversal a todas as áreas de conhecimento. Deve, no entanto, marcar a sua presença de forma natural. “Literatura até no ar… se alguém se lembra de a pôr lá” expressa exatamente essa naturalidade. A leitura orientada pelo docente deve ensinar a interpretar (...). O mesmo se passa com a leitura cooperativa. O desenvolvimento de estratégias interpretativas, críticas e inferenciais será mais proveitoso se os pares puderem partilhar dúvidas e progressos. É essencial que as atividades realizadas permitam a tomada de consciência, pelos alunos, de que estão a evoluir. Entre a consolidação da leitura como elo sociabilizante e o desenvolvimento da competência leitora está o segredo para o sucesso (Collomer, 2003: 148).
Indicadores do Núcleo de Educação e Cultura
- 32 bibliotecas criadas desde 2004
- 12.000 livros adquiridos
- Acervo de 6.000 livros na Biblioteca da Flipinha
- 6.000 livros doados para 20 escolas da região
- Doação do acervo Carlos Calchi de 822 livros para a biblioteca municipal de Paraty
- 7.000 alunos usaram a biblioteca da Flipinha em 2009
- 90% das escolas de Paraty participam do programa educativo da Flipinha
- 45 escolas participantes do programa na região, somando 5,3 mil crianças
- 74 eventos realizados ao longo do ano de 2009 (cursos, palestras e oficinas)
- 40 apresentações de alunos da rede pública de ensino em 2009.
É importante ressaltar que a nossa experiência pode ser reproduzida em qualquer cidade. Os resultados que alcançamos aqui são conseqüências da nossa crença na importância e na magia dos livros. Somos movidas por essa paixão que apenas aqueles que são tocados por ela podem saber. É essa paixão que queremos despertar nos nossos jovens e crianças. As crianças acreditam em ficção, mas não em mentiras, assim, não é possível formar leitores fingindo que se lê. Então, o primeiro ingrediente para essa receita é se formar leitor. Depois, disponibilize livros de qualidade e construa a ponte entre os livros e os alunos. Assim, verá nascer leitores.
Todas as ações do projeto são pensadas para transformar Paraty em uma cidade de leitores e é sob esse audacioso objetivo que temos trabalhado nesses anos.
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, S.S., L.T. Soares, L.G. Pougy, R.F. Souza (2008), Da avaliação de Programa Sociais a Constituição de Políticas Públicas: a área da criança e do adolescente, Rio de Janeiro: UFRJ.
BOSI, Ecléa (1994), Memória e sociedade: Lembranças de velhos, São Paulo: Companhia das Letras.
CÂNDIDO, Antônio (1995), Publicado na Folha de São Paulo em 27 de agosto de 1995 e em Vários escritos, São Paulo: Duas Cidades.
— (2000), Na sala de aula: Caderno de análise literária, São Paulo: Ática.
— (2003), Os parceiros do Rio Bonito, São Paulo: Editora 34.
— (2006), Literatura e sociedade, Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul.
CASTEL, Robert, Luiz Educardo W. WANDERLEY, Mariangela Belfiore WANDERLEY (2004), Desigualdade social e a questão social, São Paulo: Educ.
CEVASCO, Maria Elisa (2003), Dez lições culturais, São Paulo: Boitempo.
COLOMER, Teresa (2003), A formação do leitor literário, São Paulo: Global.
EAGLETON, Terry (2005), A idéia de cultura, São Paulo: UNESP.
IPEA (2007), Economia e Política Cultural: acesso, emprego e financiamento, Coleção de Cadernos de Políticas Culturais, Brasília.
— (2007), Política Cultural no Brasil, 2002-2006: acompanhamento e análise. Coleção de Cadernos de Políticas Culturais, vol. 2, Brasília.
GONÇALVES, José Reginaldo (1988), Autenticidade, memória e ideologias nacionais: O problema dos Patrimônios Culturais. Estudos Históricos.
HALBWACHS, Maurice (2006), A memória coletiva, São Paulo: Centauro.
LAJOLO, Marisa (2001), Literatura: leitores & leitura, São Paulo: Moderna.
MAIA,Thereza Regina de Camargo (1974), Paraty: religião e folclore, São Paulo: Companhia Editora Nacional.
MELLO, Diuner (1976), Paraty, roteiro do visitante: informativo turístico e cultural, Rio de Janeiro: ed. do autor.
— (2006), Paraty estudante. Instituto Histórico e Artístico, Garatinguetá: Frei Galvão Gráfica e editora.
MINISTÉRIO DA CULTURA (2006), Plano Nacional da Cultura, Brasília: MinC.
— (2006), Sistema Nacional da Cultura, Brasília: MinC.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, MINISTÉRIO DA CULTURA (2007), Plano Nacional do Livro e Leitura, Brasília: Mec, MinC.
ROCHE, Chris (2002), Avaliação de Impacto dos trabalhos de Ongs: Aprendendo a valorizar as mudanças, São Paulo: Cortez. ABONG / Oxford: Oxfam, 2002.
SOUZA, Marina Mello (2008), Paraty e as Festas, Rio de Janeiro: Ouro sobre azul.
[1] O Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) é um conjunto de projetos, programas, atividades e eventos na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas em desenvolvimento no país, empreendidos pelo Estado (em âmbito federal, estadual e municipal) e pela sociedade. A prioridade do PNLL é transformar a qualidade da capacidade leitora do Brasil e trazer a leitura para o dia-a-dia do brasileiro.