Isabella Massa de Campos
Documento político-pedagógico -
Biblioteca Comunitária Alcino José de Lemos
Isabella Massa de Campos, Carla Daniel Sartor, Isadora Garcia
CIESPI (Centro Internacional de Estudos e Pesquisas Sobre a Infância); Promundo; AMAM (Associação de Moradores de Água Mineral)
(isamassa@oi.com.br / ciespi@ciespi.org.br)
Resumen: A Biblioteca Comunitária Alcino José de Lemos é parte de ações promovidas pelo Ciespi e pelo Promundo junto à comunidade de Água Mineral, em São Gonçalo, Rio de Janeiro, Brasil. O documento político-pedagógico tomou forma a partir das intervenções e reflexões envolvendo toda a equipe, de 2005 a 2009. Baseados em uma metodologia participativa, iniciarmos a escrita coletiva do documento. Das etapas envolvidas no processo destacamos o tempo dedicado às trocas dialógicas e de articulações criativas. As diretrizes político-pedagógicas do documento são: aprofundamento pedagógico, cursos de capacitação, mediadores, parcerias comunitárias, fóruns comunitários, consultas sobre leitura.
Palavras – Chave: biblioteca, documento político-pedagógico, participação.
Abstract: The Communitarian Library Alcino Jose de Lemos is part of many actions promoted by Ciespi/Promundo to improve educational and cultural level in the Mineral Water community in Rio de Janeiro, Brazil. The political-pedagogic document took shape from the interventions and reflections involving the whole team, from 2005 to 2009. Based on a participatory methodology the collective writing of the document was started. The steps involved in the process highlight the time spent with creative dialogues. The main political-pedagogic lines contained in the document are: pedagogic improvement, courses for knowledge acquisition, communitarian partnership, communitarian forums, reading consultation.
Keywords: library, political-pedagogic-document, participatory.
A história da Biblioteca Comunitária Alcino José de Lemos é parte de um conjunto de ações e projetos promovidos pelo CIESPI – Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância e pelo Instituto Promundo junto à comunidade de Água Mineral (São Gonçalo, Rio de Janeiro).
O Instituto C&A apoiou esta iniciativa e, todas as etapas para a consolidação da biblioteca foram sendo implementadas até sua inauguração em 31 de julho de 2004.
A idéia de fazermos o documento político-pedagógico da Biblioteca Alcino José de Lemos surgiu e começou a tomar forma a partir de uma série de intervenções, tanto no campo físico da biblioteca, quanto no pedagógico. O projeto do CIESPI, Bibliotecas Comunitárias - Transformando Espaços foi responsável ora pela promoção, ora pelo encaminhamento de cursos de capacitação para Contadores e Leitores de Histórias, para Dinamizadores de Biblioteca, de oficinas de livros artesanais e criação de um objeto que consistiu em um tapete de histórias, até o aprofundamento teórico-pedagógico, ocorridos em 2005, 2006 e 2007. Esse conjunto de ações, encontros e reflexões envolvendo a equipe como um todo, originaram o documento que ficou pronto em 2009.
O desafio fez surtir muitas perguntas que passaram a ser feitas na busca de esclarecer a função formadora e facilitadora da biblioteca na aprendizagem da leitura, no complemento escolar, ao público a quem se destinava essa prática, as diferentes parcerias comunitárias. Incorporamos ao documento político-pedagógico a reflexão sobre essas questões.
Um documento político-pedagógico tem como função revelar um conteúdo, um posicionamento, abrigando parâmetros teóricos e práticos que ajudam a rever o percurso de funcionamento, neste caso, da Biblioteca Comunitária Alcino José de Lemos e a projetar, para o futuro, um arcabouço de reflexões e práticas, gerando uma referência de sua história.
Construir este documento, a tantas vozes e escritas, respeitando a contribuição que cada um pôde dar é o princípio cuja concepção é a mais democrática possível. Ele é um documento unânime, com muitas caras. Ao darmos de si para o outro, aproximamos e refletimos convergências e essas têm mais força para ir adiante.
Construir esse projeto me fez refletir sobre minhas experiências enquanto estudante de Pedagogia, pois um projeto político e pedagógico visa transformação da realidade existente, retratando a situação atual, refletindo sobre a realidade desejada, posicionando-se sobre as linhas de ações que serão assumidas, visando a transformação (Esther, estagiária da biblioteca).
Baseados em uma metodologia participativa, desenvolvida nas comunidades que fazem parte da Rede Brincar e Aprender, outro projeto do CIESPI, o pressuposto de sentir-se parte do processo era o primeiro passo para iniciarmos a escrita coletiva. Dentre as etapas desse processo destacamos o tempo dedicado às trocas dialógicas, o tempo de reflexão e o tempo de articulações criativas.
Denominamos este documento de político pedagógico, por compreender o “político” enquanto possibilidade de conhecer, de questionar, por meio da ação e da construção conjunta da biblioteca comunitária com as crianças e com os mediadores, um espaço de apropriação e aprendizado coletivo.
A proposta só teria sentido se diferentes atores na comunidade de Água Mineral contribuíssem com suas opiniões e visões acerca do papel da biblioteca na formação de crianças. A forma de participação escolhida durante o processo, que teve início em 2007, partia do público diversificado que agregamos a essa discussão. Quanto maior o número de moradores, maior a possibilidade de visualizarmos pontos em comum, dificuldades, expectativas e potencialidades.
A participação do ponto de vista pedagógico implicava um conhecimento teórico-prático, a vivência do dia a dia, a gestão da biblioteca repleta de sentidos a serem explorados, associada a um papel formador e transformador. A equipe de dinamizadores, por nós denominados como aqueles que desenvolvem atividades de leitura, dinamizando o espaço da biblioteca e ou, mediadores, como aqueles que desempenham o papel de intermediários entre a criança e a leitura, considerados parte crucial deste público, e responsáveis pelos aspectos que compõem a estrutura pedagógica, fizeram parte de uma série de ações e reflexões, levando-os a condição de porta-vozes na elaboração do documento.
Oprocesso de construção de diretrizes político-pedagógicas para o desenvolvimento do documento da Biblioteca Alcino José de Lemos foi elaborado através de um tripé de ações:
1) Aprofundamento Pedagógico em diálogo com a prática dos mediadores/dinamizadores
O estabelecimento de um diálogo pedagógico visando aprofundar conhecimentos da própria prática e das trocas junto ao público atendido, levando em conta os impasses e soluções encontradas no dia-a-dia da biblioteca, além do exercício de desenvolver um planejamento das ações para uma maior abrangência do trabalho de leitura na comunidade, foi base para alguns cursos de capacitação ocorridos desde a inauguração da biblioteca e, conseqüentemente, para a elaboração do documento. Todos os cursos de capacitação partiram do princípio de que o conhecimento proveniente da cultura local e das muitas raízes que constituem a realidade vivida é potencializadora de variadas perspectivas com relação à educação de crianças.
Espaços pedagogicamente criados para a troca de experiências, para a expressão dos saberes, da memória e das idéias, possibilitaram e continuam possibilitando dar visibilidade a iniciativas que tem como eixo a leitura, aumentando as chances de ampliação das ações, bem como um maior impacto, na disseminação da mesma, na comunidade.
Inseridos em um contexto específico; o da biblioteca comunitária, valorizar os saberes locais, deflagrados pela oralidade e revisitados nas histórias literárias, ou seja, no mundo da leitura, configura-se num dos pressupostos para o exercício de mediação e de incentivo à leitura. Conhecer o que chamamos de universo da leitura significa abrir um leque de possibilidades, onde existe um percurso histórico da leitura e literatura, com diversos autores, editoras, produções e temáticas que são deflagrados durante esse processo de aquisição e trocas de conhecimentos.
1a) Cursos de Capacitação
Quando iniciamos o primeiro módulo do curso em Contadores e Leitores de Histórias, uma das preocupações e por isso mesmo, uma das estratégias, era apresentar ao grupo que participava pela primeira vez de um curso com essa proposta na comunidade de Água Mineral, a possibilidade de incorporar, deixar entrar no coração a dimensão da leitura literária nas suas vidas para ser possível compartilhar com o outro. Outro pressuposto que embasa este documento.
A entrega do grupo dava-se à medida que a geração de prazer provocava emoções no ato de ouvir e de ler histórias. Emoções, interrogações, descobertas, escolhas. Escolhas que libertam através da literatura. Literatura que atesta a sensibilidade humana. Sentimentos que transformam pessoas.
O conteúdo do curso, dentre outros, tinha como premissa, o respeito aos valores culturais próprios do contexto da criança e o acesso à literatura com base no Estatuto da Criança e do Adolescente, mais especificamente o art. 58, que garante o respeito aos valores culturais, artísticos e históricos na formação de crianças e adolescentes.
A literatura no âmbito da biblioteca comunitária contribui para a efetiva concretização do direito do ser humano à informação, ao desenvolvimento intelectual, às oportunidades de participação e ao processo de autonomia e emancipação.
Os cursos de capacitação propiciaram a participação nos debates suscitados por diversos textos pedagógicos, teóricos, e de literatura infantil. Situar-se enquanto sujeito de um contexto histórico foi premissa necessária para trocar e despertar significados, reflexão e diálogo e assim, provocar questionamentos e transformações.
Avivar, fazer lembrar e estimular a criatividade do aluno era um dos objetivos para a formação de um mediador de leitura fazedor de sua própria prática.
Apropriar-se das histórias de literatura infantis contidas na seleção de livros, conhecer autores e ilustradores significativos desvendava diversas visões de mundo. As visões dos autores, as visões do grupo, as visões pessoais que iam por sua vez compondo os debates, as trocas e a interação no curso.
Identificar-se com a mensagem do livro para transmiti-la a outros refletia escolhas, desejos, interesses e lembranças pessoais. Para isso foi preciso que o objeto livro fosse lido de diversas maneiras e escolhido através do coração.
A leitura de histórias realizada pelos participantes do curso na condição de mediadores de leitura, percorreu alguns lugares dentro da comunidade e adjacências, dentre eles escolas, creches e a própria biblioteca.
1b)Parcerias comunitárias
São vitais para o funcionamento de determinados serviços oferecidos em uma comunidade. É nelas que reside a possibilidade de expansão do trabalho, atingindo mais pessoas, criando uma comunicabilidade e troca de informações, que dá visibilidade e integração entre grupos e pessoas de áreas afins ou mesmo diferentes. É o princípio de uma rede social.
A Biblioteca Alcino José de Lemos, ao longo de seus três anos de existência buscou parcerias dentro e fora da comunidade, como forma de ampliar sua função de incentivadora e formadora da leitura para crianças e jovens.
Instituições de educação como o CIEP 422 Nicanor Ferreira Nunes e a escola de educação infantil Arco-Íris Encantado são parceiras de longa data, tendo contato com a leitura de histórias e com os livros para manuseio, através de encontros semanais continuados, elaborados a partir da demanda das próprias escolas ou por sugestão da equipe da biblioteca.
As parcerias institucionais também ocorrem para a realização das 5 Maratonas da Leitura; evento organizado pela Biblioteca Alcino José de Lemos, em uma instituição parceira, buscando reunir um maior número possível de moradores, com a finalidade de disseminar a leitura a partir do trabalho realizado na biblioteca. Uma programação variada em torno da leitura e dos livros, tais como, visita de autores, ilustradores, oficinas de arte-educação realizadas pelos próprios dinamizadores da biblioteca e permeadas pela literatura, dentre outras coisas, eram a tônica das Maratonas de Leitura.
1c) Mediadores/dinamizadores de leitura
A equipe de mediadores/dinamizadores é aquela que faz da mediação, um instrumento de atuação pedagógico. O papel do mediador, balizado pelo coração e pelo afeto no desenvolvimento das atividades com as crianças, possibilita estabelecimento de um processo autônomo e de construção conjunta.
A mediação possibilita sentir e valorizar as possibilidades de conexões com o outro, entendendo-o enquanto sujeito único e múltiplo, produtor de cultura, fazedor de história, sendo parte de um todo. É a mediação pelo coração, incorporado no papel de mediador.
Também cabe à equipe de mediadores o domínio das áreas gerais do conhecimento e competências para administrar, organizar e planejar suas ações em consonância com diferentes formas de manejar informações, criando e prestando serviços de atendimento ao público.
Fui convidado a coordenar a Biblioteca Comunitária Infanto-Juvenil Alcino José de Lemos na comunidade de Água Mineral, onde moro. Este é um projeto que tem como objetivo o fomento e o incentivo à leitura. Antes os jovens da comunidade tinham que se locomover para outras comunidades, muitas vezes passando por constrangimentos causados por motoristas de ônibus, que não queriam dar caronas aos estudantes. Isso sem falar que quem não era estudante, não tinha nenhuma possibilidade de se tornar um eventual leitor (Roque Wanderson – mediador de leitura)
2) Fóruns Comunitários
Somados ao período de aprofundamento e de formação pedagógica no curso que foi ministrado, foram realizados três fóruns comunitários, onde se discutiu o que é uma biblioteca comunitária e sua importância na formação da criança.
A intenção de reunir pessoas, como mães, pais, professores, as próprias crianças, pessoas de outras instituições, de projetos locais, ou simplesmente moradores curiosos acerca do que estava sendo feito no espaço da biblioteca, permitiu clarear e ampliar algumas informações e instigar algumas questões e conversas.
A proposta inicial era a de que o fórum se constituísse num espaço permanente para debates e apoio para o funcionamento da biblioteca, no entanto, devido ao público diferenciado em cada encontro, optou-se por otimizar o processo de construção do documento, por meio de escolhas de algumas estratégias para que o grupo, pudesse consolidar a estrutura e finalmente estabelecer um primeiro texto.
O documento político - pedagógico foi escrito em conjunto com a equipe da biblioteca, no entanto, a proposta é a de que este documento seja debatido com um maior número de pessoas possível, e à medida que o cotidiano da biblioteca for ampliado ou alterado, acompanhará os passos seguintes da equipe, financiamentos, ações e, desta forma o movimento vivo que ali se encontra.
3) Consultas Sobre Leitura
A intenção de fazermos uma consulta bem como ampliar o contato com as pessoas da localidade de Água Mineral, se deu após a constatação de que algumas questões com foco na biblioteca não haviam sido contempladas durante a realização do fórum comunitário.
Buscando clarear mais a dinâmica estabelecida na relação dos usuários da biblioteca com os livros e a leitura, conversamos com os responsáveis pelas crianças; ou seja, aqueles que levam e buscam seus filhos, netos, irmãos, de casa para a biblioteca, da biblioteca pra casa e, participam ocasionalmente de eventos tais como passeios, saraus, maratonas da leitura, ou como voluntários, realizando oficinas ou atividades da biblioteca.
Por considerarmos a opinião das crianças e dos jovens de extrema importância; já que são os maiores beneficiados no convívio com a cultura escrita, eles também foram consultados.
Todo esse processo é parte essencial do documento político-pedagógico; no entanto, ele permanece em aberto porque não se encerra no percurso relatado, ele é reflexo e registro sim, mas tem como proposta se refazer, ficar acrescido de outras características e experiências, ângulos próprios da pessoa ou grupo ocupante desse lugar.
Fruto do meio sócio-cultural e do meio sócio-educativo em que está inserido e sendo composto por ele, vai ganhando novas formas e reflexões que poderão ser registradas, ampliando o escopo desse documento, contribuindo para a memória cultural e política da comunidade a partir desse pólo de ação e observação que é a biblioteca.
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