Renata Junqueira de Souza

A força literária de Lygia Bojunga:

quando realidade e fantasia formam crianças leitoras

Renata Junqueira de Souza (FCT/Unesp)

Cyntia G. Simões Girotto (FCL/Unesp)

FAPESP/CNPq/CELLIJ

(recellij@gmail.com / cyntia@marilia.unesp.br)

 

Resumo: Diante da dificuldade de crianças brasileiras terem acesso ao letramento literário, teceremos considerações sobre a leitura de Lygia Bojunga entre crianças de escolas públicas do Oeste de São Paulo. A pesquisa envolveu 500 alunos brasileiros e a recepção de A bolsa amarela. A escolha de Bojunga se deve ao seu reconhecimento mundial. A partir da exposição dos alunos a uma narrativa que trabalha o cotidiano por meio dos elementos fantásticos, com pitadas de humor, percebemos a evolução da formação do leitor, através da distribuição dos livros, das leituras e dos debates. O objetivo foi avaliar a recepção à A bolsa amarela, verificamos que os alunos não lêem mais ou não aprendem a ler literatura, porque não são muitas as oportunidades oferecidas pela escola.

Palavras chaves: Leitura, literatura, recepção infantil, Lygia Bojunga.

 

Abstract: Brazilian children have difficulties to access literacy, in this way we will comment the reading of A bolsa amarela with students from public schools in the west of Sao Paulo. The research involved 500 Brazilian children and the reception of the text A bolsa amarela. The choice of Bojunga is justified by her world recognition. When students were exposed to a text that deals with routine with fantastic elements and humour we realize the evolution in the formation of a reader through the distribution of the books, the reading and the discussion. The objective was to evaluate the reception of A bolsa amarela, we found of that the students do not read more literature because they do not have many opportunities in school. Keywords: reading, literature, children’s reception, Lygia Bojunga.

 

Da obra já clássica de Lygia Bojunga – A Bolsa Amarela – foram distribuídos, para seis das escolas participantes do projeto Literatura na Escola, 18 exemplares da 11ª reimpressão vinculada à 34ª edição. Serão analisadas as manifestações – escritas ou verbais – dos alunos das quartas séries das seguintes escolas municipais: Tomas Menk e João Leão (Assis); Olimnpio Cruz e Americo Capeloza (Marília); Juraci e Prof. Ditão (Presidente Prudente). Como as demais obras oferecidas aos alunos para leitura e discussão, A Bolsa Amarela também recebeu comentários por meio de debates gravados e depoimentos escritos, posteriormente transcritos. Os dados foram organizados em categorias de análise elaboradas após a leitura dos dados pela equipe de pesquisadores. Organizadas as categorias, as análises tiveram como foco o objetivo fundamental da pesquisa: o de verificar o modo como os alunos de 10 anos interagiram com a obra, quais eram os indicadores do horizonte de expectativas e como se manifestavam como leitores de literatura infantil.

Tendo como referência as categorias, serão comentados os dados vinculados à apreciação geral do livro e a relação com o horizonte de expectativas do leitor. Os depoimentos escritos pelos alunos, em sua maioria, indicam a aceitação do livro, manifestada por meio da expressão “eu gostei muito”, mas, por outro lado, embora com freqüência baixíssima, apareceu também “não gostei”. As razões e as justificativas a respeito de uma ou da outra manifestação serão agora expostas com o objetivo de desnudar as condutas e perspectivas do leitor em formação em relação a uma obra já considerada clássica e de boa aceitação entre as crianças nessa faixa etária. Um razão das mais recorrentes entre as que indicam a aceitação é a identificação do leitor com episódios ou com comportamentos da personagem principal. LJA da escola Leão, como muitas outras alunas, teve empatia com a narrativa porque a achou interessante, longa e por ter como tema o fato de uma menina guardar em um esconderijo todas as suas emoções. JPA, da mesma escola acrescenta que por ser um romance, a história lhe agradara. Possivelmente, a aluna categoriza uma obra, como romance ou não, pelo volume de suas páginas, porque esse dado – da extensão da narrativa – apareceu com freqüência nas respostas, ora como positivo, ora como indicador de obstáculo para a leitura integral. MMA da mesma escola foi direto: “Não gostei. O livro é muito grande e não consegui ler tudo”, do mesmo modo como se manifestou seu colega JOV: “O livro é muito longo e seus personagens são chatos” e DHF: “O livro é muito grande e ainda mais é dividido em capítulos e isso é coisa que eu menos gosto”. PCC não atribui à materialidade da obra – o volume de páginas – o fato de não ter gostado. Aproxima-se de JOV ao atribuir uma certa frustração em relação a atitudes e ações de alguns personagens, ao afirmar que não gostara do livro porque “o irmão mais velho da menina não fala nunca”. HCO, por seu turno, dirige sua atenção para o desejo da personagem em se tornar escritora porque ela, leitora, alimenta um secreto desejo de se tornar advogada no futuro, mas simultaneamente, apontava como interessante o fato de a menina “escrever carta para quem não existia”.

Tanto em relação à profissão futura, quanto às cartas para destinatários inexistentes, está presente o imaginário e o mundo fantástico no qual a leitora procura fundir sua vida com a vida da personagem. Trata-se de um modo de ler que revela claramente o mergulho na obra e a identificação entre vida e imaginário. A esse respeito, Colomer (2003: 223) entende que

 

O desenvolvimento da fantasia moderna supôs a criação de novos imaginários de ficção a partir de diversos caminhos, associados majoritariamente ao humor: a alteração da vida cotidiana dos personagens ao irromperem elementos fantásticos, a exploração especulativa sobre o funcionamento ou conseqüências de fenômenos e mundos possíveis, a desmitificação dos elementos fantásticos tradicionais e o jogo metaliterário sobre as regras da construção narrativa. E a fantasia é também o instrumento privilegiado, tanto para resolver os conflitos psicológicos dos personagens, como para a denúncia das formas de vida da sociedade pós-industrial.

 

A narrativa de Bojunga lida pelas crianças, trabalha o cotidiano por meio dos elementos fantásticos, com pitadas de humor. Os elementos fantásticos tradicionais dão espaço para a fantasia que tritura e desnuda conflitos psicológicos da vida atual, entre o crescer e o não crescer, entre manter-se preso a condicionantes do gênero ou libertar-se para invadir contextos e ações tradicionalmente pertencentes ao outro gênero.

Os leitores infantis aqui estudados manifestaram esse gosto pelo fantástico vivido pelos personagens no interior da bolsa de Raquel. E para ela e todos os seus personagens e seus leitores

 

a fantasia é utilizada como um instrumento especulativo sobre a realidade externa e próxima ao leitor. Com a independência de que se faça através de modelos modernos ou da tradição oral, a maioria das histórias respondem a pergunta “o que aconteceria se...?”. As narrações indicam o desenvolvimento das características e conseqüências da hipótese extraordinária sugerida ou se aplicam em encontrar uma resposta engenhosa ao problema que o fenômeno poderia causar. Assim, muitos destes contos respondem a uma atitude especulativa sobre o que ocorreria se alguém encolhesse intermitentemente ou de forma definitiva, pudesse mudar o significado das palavras, se convertesse em animal, ou se os objetos tomassem vida, funcionassem autonomamente, multiplicassem seus efeitos [..,] (Colomer, 2003: 242).

 

Entretanto, nem sempre as crianças aceitam as fantasias literárias. Embora manifestem aceitação pela genialidade da obra, desmascaram o exagero fantástico, como fez o menino DSG da escola Olimpio Cruz: “A história é louca. A autora fez perfeita a história. Dou parabéns a ela”. Essa perspicácia analítica se manifesta por meio de outro aluno, da mesma escola, a respeito da organização em capítulos e seu conteúdo. O seu depoimento tem ares de crítico literário e não de leitor comum: “Eu gostei mais do capítulo II e III. Do capítulo I porque a menina cria o romance do galo e da bolsa que tinha sete filhos e do terceiro por causa do galo que eu achei muito legal e para mim não tem que mudar nada”. A aluna LUA, da Escola João Leão de Carvalho, de Assis, afirma fazer da sua vida a própria fantasia inventada por Bojunga: “Eu gostei da personagem porque ela é que nem eu... se achar uma pedra dá vontade de conversar com aquela pedra... converso com tudo o que está na frente”.

Na Escola L. T. Menk (Assis), a materialidade da obra, isto é o volume de páginas é o fator proeminente como justificativa para atribuir ao livro o fato de ser indesejado. A cor das ilustrações também desagrada aos leitores, como se manifestou VIC: “dentro do livro não tinha que ser preto e branco, tinha que ser colorido” ou como REN: “o livro podia ser um pouco mais colorido e maior” ou como DA “eu gostei, mas tinha que ter mais desenho”. Respostas próximas a essas deu o aluno MAS da escola Olimpio Cruz de Marilia: “O livro é interessante, mas tem palavras complicadas. Se eu fosse escrever, eu colocaria mais desenhos e as palavras maiores”.

È muito interessante o depoimento desse aluno, porque revela a tendência da produção literária destes novos tempos, especificamente na relação entre a palavra e a ilustração, a leitura e o olhar, entre a narrativa da palavra verbal e dos ícones. Essa tendência é analisada por Colomer (2003: 318), ao afirmar que

 

Definitivamente, pois, os distintos fenômenos de fragmentação narrativa – tanto estão a serviço da ajuda à leitura, como buscam a experimentação narrativa, ou ainda compartilham ambas as finalidades – são muito freqüentes na narrativa atual e causam um certo grau de desagregação contra os pressupostos de forte integração narrativa definidos por Shavit (1986). A fragmentação corresponde, necessariamente, a uma literatura pensada para a leitura e o olhar que, como tal, pode acolher em grande medida características técnicas da literatura de adultos ou da inter-relação entre narrativa escrita e audio-visual

 

Deste modo, capa, tamanho da capa e ilustrações são os indicadores da não aceitação da obra, ao lado do volume de páginas, embora tenham sido poucos os alunos a defender essa opinião. De qualquer maneira, são dados a serem considerados, mesmo com baixa ocorrência. De outra parte, a aceitação é indicada na maioria das vezes por causa das ações de Raquel ou pelo comportamento de um personagem, nomeadamente pelo galo: “eu achei o livro muito interessante e me diverti por causa do galo”. VICT talvez sintetize com clareza o leitor típico dessa faixa etária ao justificar a razão de ter gostado: “gostei porque é cheio de aventuras e eu adoro livro de aventuras e ele é muito legal porque tem várias aventuras”.

DMS da escola Juraci M. Peralta (Prudente), revela em seus comentários um certo fascínio por ter tido a oportunidade de poder ler um livro em sua casa e poder falar sobre ele com os participantes da pesquisa: “eu achei legal porque tinha muitas palavras que eu gostei; gostei dos desenhos; gostei do galo; obrigado por dar um livro tão legal. Parabéns”. Atitude semelhante foi a de SAN da escola Olimpio Cruz (Marilia) ao emitir um pedido em seu depoimento: “Adorei este livro. Espero que a UNESP venha de novo”. Seu colega JVI, entretanto, destaca a aceitação da obra por um episódio, o momento em que a bolsa estoura durante o almoço na casa da tia da personagem. Essa variedade de afirmações revela o modo como cada um se relaciona com o livro: alguns pela sua forma externa, outros pelo enredo, outros pela ação e identificação com personagens, outros ainda por algum episódio considerado expressivo.

Os alunos que leram a obra até o final alimentaram o desejo de ampliar a história, isto é, o desejo de que a autora desse, de algum modo, a continuidade da narrativa. VIT da escola Prof. Ditão (Prudente), sugeriu que Bojunga fizesse, à maneira dos filmes de sucesso, a Bolsa Amarela 2.

Alguns depoimentos indicam algumas características da criança de 10 anos em seu processo de formação de leitor. BAR da escola Olimpio Cruz (Marilia), se define como leitora voraz: “eu gostei [do livro] porque eu gosto de ler e a toda hora eu lia”, enquanto outra aluna estava mais preocupada em saber como é que Bojunga “fez um livro tão bom e grosso como esse”.

Na maioria das vezes, a discussão coordenada pelos pesquisadores provoca a necessidade de reler o livro, embora isso não fosse possível, porque os exemplares de uma escola logo eram encaminhados para uma outra para que os alunos, em sistema de rodízio, pudessem ter acesso a todos. Na escola Olimpio Cruz, DOU declarou que “parece ser outra história, dá vontade de ler de novo”. Uma colega apontou também o impacto que a discussão do livrou provocou em suas atitudes como leitora: “Aprendi a ler mais. Não gostava de ler. Você apareceu, agora eu leio”, enquanto para DAM houve ampliação da necessidade de ler: “antes eu já gostava, agora gosto mais ainda”. DAN, da escola Capeloza (Marilia), ampliou sua condição de leitor crítico ao deixar de ter atitudes pré-concebidas: “Pensei que o livro fosse chato, mas é diferente do que imaginei, é criativo… eu aprendi que não se pode julgar o livro pela capa ou pelo nome”.

Frequentemente os alunos estabelecem conexões entre as ações, virtudes e falta de virtudes das personagens. CAR da escola Lucas Menk (Assis) compara a chatice do pai de Raquel com a de seu pai, enquanto Terrível seria como o primo de BAR que costumeiramente xinga a sua mãe de puta. Embora as crianças se envolvem com a fantasia, há momentos da leitura em que não a compreendem. O tempo da narrativa, por exemplo, traz certa perplexidade porque não há referências a ações do cotidiano que marcariam esse tempo.

Não é possível ignorar essa relação que os pequenos leitores fazem com as atitudes dos personagens, mesmo em situações da fantasia vivida no interior da bolsa e da relação de Raquel e seus amigos com os familiares. A respeito dessas relações familiares presentes nas narrativas, Colomer (2003: 271), afirma que

 

Além do desajuste no grau de proteção, também se critica a incapacidade paterna de oferecer uma relação que corresponda aos modelos preconizados pelos novos valores: a hierarquia legitimada por uma autoridade moralmente adquirida e não por uma simples posição familiar, assim como a defesa da comunicação e da proximidade entre crianças e adultos nas atitudes e valores adotados ante a vida. Na realidade, mais que moldar a conduta dos filhos, as obras da narrativa infantil e juvenil atual parecem empenhadas, neste ponto, em fazer-lhes saber como deveriam ser seus pais.

 

EDG da escola Juraci (Presidente Prudente) manifesta claramente o mesmo desejo de Raquel de se manter criança, porque para ele, a vida adulta, a vida dos pais não parece ser tão feliz quanto a dele, criança: “eu gosto de ser pequeno porque eu quero que minha infância demore, porque quando você é grande, você não tem mais tempo para brincar, fazer essas coisas que você gosta, você tem que esquecer tudo”.

RAF expressa a ruptura da fantasia, ao aplicar à narrativa, dados da realidade temporal, porque acredita que a história tenha se passado apenas durante um dia já que “não mostra quando ela dorme”, mas JOA da escola João Leão acredita que a narrativa tenha durado dois meses simplesmente porque o livro é longo. Um outro dado respeito da relação entre fantasia e realidade é exposto por BAR ao dizer que não gostaria de ser menina, como Raquel, a personagem, porque “menina tem que raspar a perna, tem de tirar pelo, porque desce sangue...”. TAL da escola Capeloza (Marilia) acredita que a história seria um pouco real, um pouco fantástica, porque “pois tem elementos que dá para acontecer e outros não”.

Os dados transcritos são extraordinariamente volumosos a ponto de servirem para outras pesquisas que poderiam detalhar e aprofundar a relação dos pequenos leitores com os livros, com os personagens e as relações que estabelecem entre vida, realidade e fantasia. De outra parte, é interessante perceber a evolução da formação do leitor, por meio da distribuição dos livros nas salas de aula, das leituras e dos debates filmados e gravados pela equipe. Mesmo sem uma ação orientação específica para promover a evolução do leitor de literatura infantil, a ação avaliativa provocou mudanças radicais na atitude de alguns alunos. Embora o objetivo fosse apenas o de avaliar a recepção dos alunos em relação aos livros, neste caso específico em relação à A bolsa amarela, foi possível verificar que os alunos não lêem mais ou não aprendem a ler literatura, porque não são muitas as oportunidades oferecidas pela escola, assoberbada com as pressões para cumprir determinações ou realizar eventos tradicionalmente programados e executados ao longo do ano;

Ao analisar as manifestações dos alunos das quatro escolas estudadas, foi possível verificar que A bolsa amarela continua sendo, após duas décadas, uma narrativa atraente para as crianças, principalmente porque lida com a fantasia que supera a tradicional e imprime, com ela, novas cores ao mundo cotidiano das crianças que não querem crescer e nem se sujeitar aos mandos e determinações dos adultos. Há, principalmente, na sociedade brasileira, um pequeno leitor que busca sua identidade e uma outra relação com o mundo dos adultos. Por meio de A bolsa amarela, essa relação se faz; por meio da literatura, a fantasia permite lidar com a realidade.

 

Referências

COLOMER, T. (2002), A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual, São Paulo: Global.